Pela cor
“Esse conto é uma ficção, qualquer semelhança com fatos ou pessoas é uma mera coincidência.” Década de 1960
Já passava do meio dia e aquela moça, visivelmente chegada do interior, ali em pé, no ponto de ônibus, parecia que o ônibus estava muito atrasado. Foi quando um rapaz se aproximou e perguntou:
-Você esta esperando o ônibus?
E ela respondeu:
-Sim, estou esperando há horas, e o danado não passa!
Então o rapaz perguntou:
-Você esta esperando qual?
E a moça respondeu:
-Estou esperando o “Graça”!
Foi quando o rapaz deu uma gargalhada e gritou:
-Eu te conheço, você é do Acupe, e deve ser maluca, já passaram uns dez ônibus da “Graça”. Você é Naninha, não é?
A moça já sem graça responde:
-Sou sim.
E o rapaz continua:
-Pois é conterrânea! Eu também pego ônibus pela cor, mas, depois que mudou a Empresa e conseqüentemente a cor do ônibus desta linha, nós analfabetos, estamos comendo o pão que o diabo amassou.
A moça recuperou a pose e retrucou:
-Você só podia ser do Acupe, seu inconveniente, mal educado e escandaloso, pois fique sabendo que analfabeto aqui só tem você, eu estou sem meus óculos, pois o esqueci em casa.
Nesse exato momento um ônibus para no ponto e, Naninha para se livrar do incomodo, se apressa para embarcar, quando ouve mais uma vez a voz do conterrâneo:
-Não é esse não Naninha, é o de traz, o vermelho e branco!
Pois é, a pobre da Naninha tinha ido para Salvador justamente para estudar, ficaria hospedada na casa da tia Bernadete, que estava sempre atenta e vigilante, às humilhações ou dificuldades que pudessem vir. Tia Bernadete a tratava como uma filha, mas a vida é cheia de dissabores, quantas vezes Naninha foi confundida com serviçal, discriminada e humilhada.
Um dia chegando do Acupe com as malas nas mãos, ouviu do porteiro:
-Sua patroa ainda não te ensinou que os empregados, usam o elevador de serviço?
Naninha sorriu e falou:
-Dona Bernadete não é minha patroa, Seu João! Dona Bernadete é minha tia; irmã de meu pai. Um dia ainda nesse País, descriminação Racial vai dar cadeia, te cuida seu João.
O porteiro respeitosamente murmurou:
-Desculpe dona Naninha, é que eu recebo ordens, mas realmente, não diz respeito à senhora, me desculpe!
Naninha já terminava o 3º ano do colégio Central, quando conheceu na festa de formatura, o Secretario de Transportes de Salvador, e foi amor à primeira vista. Dona Bernadete tinha o maior orgulho de receber o Secretario Dr. José Fernando Magalhães, um político jovem, com um futuro promissor, ali na sua sala, namorando a sua sobrinha.
Certo dia Naninha estava saindo da casa de sua tia Bernadete, com destino a rampa do mercado, quando passava em frente do Teatro Castro Alves, avistou no ponto de ônibus aquele conterrâneo inconveniente, e foi solidaria, parou o carro e perguntou:
-Ôh, conterrâneo, tá indo pra onde?
O homem não se conteve:
-Naninha minha jóia, eu estou indo para a rampa do mercado pegar o saveiro pro Acupe, mas o verde e branco ta atrasado, só ta passando o vermelho e branco... Você esta é chique viu, ta parecendo uma madame... Que carrão!
Naninha o interrompeu com um sorriso e disse:
-O carro é da minha tia, entra ai. Ôh Bocudo, eu te deixo lá. Bem porque o ônibus verde e branco, bem como o azul e branco, e o vermelho e amarelo, já não existe mais, todos os ônibus agora são vermelho e branco.
O conterrâneo indignado perguntou:
-Porque Naninha?
E Naninha respondeu:
-O Secretario de Transportes de Salvador, Dr. José Fernando Magalhães, meu noivo, unificou as cores dos ônibus da Capital a meu pedido, ele me perguntou o que eu queria ganhar de presente de aniversário e eu respondi que gostaria de ver todos os ônibus pintados de uma só cor, de preferência as cores da SMTC, que por coincidência é a mesma cor do Saveiro de meu avô, vermelho e branco. Que é para acabar com essa cultura do povo de pegar ônibus pela cor, pois só assim as pessoas despertariam o interesse em aprender a ler e escrever.
Bocudo não se contem e murmura:
-Quem te viu quem te ver. Já pegou tanto ônibus pela cor.
Naninha muda de assunto e pergunta:
-O Saveiro que tá na rampa do mercado é o de vovô?
Bocudo responde:
-É, mas, quem veio foi seu tio, o “golfinho” é um saveiro muito ronceiro, a viagem com ele é um verdadeiro Bordejo, e seu avô não quer perder a solenidade de inauguração do Ginásio.
Naninha deixa escapar um sorriso discreto e fala:
-Bocudo, a educação é o grande passo para sairmos da escuridão, aprender a ler e escrever é o primeiro passo, pense nisso.
Os olhos de Bocudo se enchem de luz, e parecem entender a mensagem, e quando chega à rampa do mercado, Naninha lhe entrega um bilhete endereçado a sua mãe, dona Gertrudes, e se apressa argumentando que já estava atrasada para a sua aula do curso de Direito que fazia na UFBA. E quando o carro se afastou, Bocudo fica olhando e sem se conter desabafa:
-Quem foi Naninha! Quem foi Naninha!
Obra protegida por direitos autorais.
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1 Comentário:
Muito boa, mostra realidade , idenfidade do povo acupense é bem assim.
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